Certa vez analisei a prisão em
flagrante de um taxista que reagiu ao roubo anunciado por um passageiro, entrou
em luta corporal com o roubador, o desarmou e conseguiu atingi-lo no pescoço
com a faca que tinha sido utilizada para intimidá-lo. Matou, portanto, o
ladrão. Os elementos de convicção até então colhidos davam conta de que a
reação tinha sido imprescindível à proteção da vida e de que o taxista tinha se
servido do meio necessário. Notava-se proporcionalidade entre a defesa e a
agressão sofrida. A vítima do roubo, inclusive, tinha sofrido lesões e sido
internada.
Na ocasião o taxista, mesmo
assim, chegou a ser preso em flagrante, o que demandou a intervenção do
Judiciário para a sua imediata libertação. Lembrei-me do caso não para criticar
ninguém, mas para induzir reflexão.
Conforme já decidiu o egrégio
Supremo Tribunal Federal: “A prisão cautelar – qualquer que seja a modalidade
que ostente no ordenamento positivo brasileiro (prisão em flagrante, prisão
temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de sentença de pronúncia ou
prisão motivada por condenação penal recorrível) – somente se legitima, se se
comprovar, com apoio em base empírica idônea, a real necessidade da adoção,
pelo Estado, dessa extraordinária medida de constrição do ‘status libertatis’
do indiciado ou do réu (“Habeas Corpus” 89.501 – Relator Min. Celso de Mello,
j. 12/12/2006).
O Código de Processo Penal
estabelece, quando trata da prisão em flagrante: “Resultando das respostas
fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à
prisão” (art. 304, § 4º).
Há quem sustente, sob o argumento
de que não existe regra expressa, que o delegado de polícia não pode deixar de
lavrar o auto de prisão em flagrante ainda que se convença de que a pessoa agiu
em legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal
ou exercício regular de direito, devendo encaminhar os autos à análise do
Judiciário. Com a devida vênia, não posso concordar. Diante das chamadas excludentes
da ilicitude, não há de se falar em crime. E se não existe crime, não há de se
falar em flagrante delito.
Penso que o delegado, diante da
situação que denote legítima defesa, deve apenas registrar ocorrência e expor
fundamentadamente as suas razões de que houve fato típico (conduta descrita em
lei como delituosa), porém, lícito (com amparo legal). Afinal, é bacharel em
Direito e o seu convencimento, ausente qualquer indício de má-fé, deve ser
respeitado. A carreira deve ser privilegiada. É muito comum, por ex., o
Delegado deixar de lavrar auto de prisão quando um policial militar, em
evidente resposta à agressão armada de um criminoso, atinge e mata o oponente.
Deve ter a mesma desenvoltura quando quem mata em legítima defesa é o cidadão
que foi acuado e reagiu em conformidade com a autorização legal.
A liberdade é um dos principais
direitos garantidos no art. 5º da Constituição Federal. Até mesmo para o
criminoso confesso a prisão provisória, como dito, deve ser excepcional. Não
tem lógica e fere a dignidade humana sustentar que uma pessoa que reagiu em
legítima defesa deve ser indiciada, autuada e encarcerada até que o Judiciário
se pronuncie, como se a autoridade policial não tivesse qualquer condição de
promover essa análise e como se essa espera fosse algo “normal”. Até mesmo sob
o ponto de vista do melhor aproveitamento do serviço público, o desperdício de
recursos pessoais e materiais (cada vez mais escassos) não se explica, pois a
lavratura de auto de prisão é trabalhosa e demorada...
Não parece sensato privar do
delegado essa possibilidade de analisar a legítima defesa se o juiz, diante de
evidências da excludente da ilicitude, terá necessariamente de relaxar a prisão
em flagrante justamente por conta da sua ilegalidade... Nem de longe a autoridade
policial poderá ser tachada de prevaricadora se não prender em flagrante aquele
que reagiu acobertado pela lei. Se pode decidir pela prisão, medida mais
gravosa, pode também optar por não prender.
O Tribunal de Justiça de São
Paulo já decidiu: “Não observada a prudência devida ficaria [o delegado] fadado
a cometer abusos manifestos contra a pessoa; e assim também, se obrigado fosse,
de forma automática, a praticar ato de restrição de liberdade por puro
mandamento legal sem que pudesse sopesar da oportunidade para tanto (Habeas
Corpus 990.10.078571-0, Relator Des. Camilo Lellis, j. 23/9/2010).
No caso a que inicialmente me
referi, o próprio taxista acionou a polícia. Os relatos dos policiais sobre a
cena do crime sugeriam legítima defesa. A própria autoridade policial informou
que os ferimentos que o autuado apresentava nas mãos eram “denotativos de
lesões de defesa”. O fato ocorreu na zona rural e a apreensão de uma bolsa com
pertences do roubador sugeriam a sua condição de passageiro. Resolvi que a custódia
provisória do taxista não se justificava. Além dos indícios de excludente da
ilicitude, ele era primário, tinha bons antecedentes, residia na Comarca e
mantinha ocupação lícita. Mas muita coisa poderia ter sido evitada se o
delegado tivesse apenas registrado ocorrência para posterior esclarecimento dos
fatos... Inclusive, a família do taxista, que teve até de contratar advogado,
talvez tivesse compreendido melhor o real objetivo da nossa legislação, que
deve ser sempre interpretada como um todo.
Adriano Rodrigo Ponce de Oliveira
Juiz de Direito / Professor no
Unisalesiano
Facebook Adriano Ponce Jurídico
(publicado aos 11/6/2015 no
Diário de Penápolis e no Correio de Lins; abordado em entrevista na Rádio Regional Esperança ao 8/6/2015)